Parte I: PRELIMINARES
Como se têm dito algumas asneiras técnicas sobre o problema do apagão e do comportamento da rede eléctrica, venho tentar explicar algumas coisas, esperando que mesmo os não electrotécnicos me entendam, pelo que vou sacrificar algum rigor formal à clareza. Quem não entender, pode fazer perguntas (não há penalização nas notas finais ).
Em primeiro lugar, a questão da frequência e da “inércia”, aproveitando para corrigir as asneiras que escreveu o “especialista” do Expresso.
Numa rede eléctrica tradicional, anterior ao actual predomínio de gerações intermitentes ligadas à rede por interfaces electrónicas, a ligação dos geradores à rede era electromecânica. Os geradores tradicionais (hidroeléctricos ou termoeléctricos, tanto faz) têm uns eixos que rodam a uma certa velocidade CONSTANTE, igual à frequência de oscilação da tensão alternada que geram. Em toda a rede essa tensão é igual (na frequência), e como todos os dispositivos vêm a mesma tensão, estão sincronizados.
Como é que se consegue que os geradores produzam exactamente a energia que os consumidores precisam, visto que têm de ser iguais? Não é por intervenção do Despacho, como diz o jovem especialista do Expresso, mas é observando a frequência da tensão na rede. Se eu ligar o interruptor de uma lâmpada, ou se um comboio do Metro arrancar, os geradores não sabem que isso aconteceu, e muito menos o Despacho. O que sucede é um fenómeno físico: instantaneamente, aquele adicional de consumo é coberto por um adicional de produção nos geradores, mas não por carregarem no acelerador, e sim porque perdem velocidade, transferindo energia mecânica dos seus eixos em rotação para a rede. Como um carro que apanha uma subida mantendo nós a posição do acelerador, e que com isso perde velocidade.
Essa energia adicional que os geradores transferem para a rede eléctrica e que vai cobrir o adicional de consumo é proporcional à inércia dos seus eixos (na realidade ao seu “momento de inércia”), e à velocidade (na realidade ao quadrado da velocidade, mas isso é um detalhe), e é a redução desta velocidade que permite o equilíbrio instantâneo entre geração e consumo. Isto ocorre durante o primeiro segundo após a ligação do tal interruptor. Como a frequência da tensão é a mesma da rotação dos geradores, observando a tensão há uns dispositivos automáticos que vêm essa perda de velocidade e carregam no acelerador para repor a frequência e a velocidade originais do gerador. Como no “cruise control” dos carros, só que no caso da rede eléctrica isso ocorre em TODA a rede, que vê a mesma frequência da tensão em todo o lado. Essa aceleração acontece, claro, nos segundos posteriores ao da perda de velocidade (e da frequência da tensão), pois é esta mesma perda de velocidade que diz aos controladores que alguém ligou um interruptor. Ao acelerar, metendo mais combustível nas turbinas ou mais água (no caso hidroeléctrico), até a velocidade ser a mesma que antes, os geradores voltam a equilibrar a produção e o consumo, num novo ponto de equilíbrio. Tudo automático.
Isto é a ideia básica sobre como se consegue equilibrar geração e consumo automática e instantaneamente – é como o “cruise control” de um carro que reage às variações de velocidade com as subidas e descidas actuando sobre o acelerador.
Porém, numa rede eléctrica extensa, como a ibérica, as coisas são mais complicadas, embora o princípio seja o mesmo.
Primeiro, há muitas centrais produtoras que não têm “cruise control”, que não reagem às variações de consumo. Produzem sempre o mesmo, dependendo apenas da programação que tiverem, ou das condições ambientes. É o caso, em especial, das renováveis que operam de modo a aproveitar todo o vento, ou todo o sol, ou todo o caudal de fio de água, que haja. E, no caso das eólicas e fotovoltaicas, nem sequer têm eixos rotativos com inércia, estando ligadas à rede eléctrica por interfaces electrónicas, e não electromecânicas. Mas, além destas renováveis, mesmo nas tradicionais há geralmente muito poucas responsáveis por manterem a frequência da rede estável, com as outras a darem apenas um contributo. Na rede ibérica, por exemplo, a frequência é pilotada por Espanha e a sub-rede portuguesa limita-se a ir atrás.
Segundo, e isto é que é muito importante e tem sido ignorado por quase todos os que têm falado do apagão: se uma rede eléctrica estiver ligada a outra muito mais potente, como a portuguesa à espanhola por linhas de interligação, ou a ibérica à francesa e demais continente por linhas nas bordas dos Pirinéus, essas redes maiores agem como inércias infinitas (comparativamente), e a frequência da nossa rede quase não mexe! Ou mexe, mas muito pouco. O que mexe, e é sintoma do desequilíbrio nas nossas redes, é a energia em trânsito nas tais linhas de interligação! Até que essas linhas entrem em sobrecarga e as respectivas protecções as desliguem, para as proteger, e, a partir daí sim, a frequência da nossa rede finalmente cai! Mas, nessa altura, perdeu-se o grande apoio que a tal rede “infinita” dava, e temos a iminência de um apagão na nossa rede!
É como se o nosso carro estivesse atrelado a um poderoso camião que, ele, fosse em “cruise control”, enquanto nós mantínhamos o acelerador sempre na mesma posição. Nas subidas, era o camião que nos puxava. Mas se os cabos que ligam o carro ao camião forem fracos, partem-se nas subidas íngremes, e aí o nosso carro perderá rapidamente velocidade, se não acelerar a tempo ou não tiver potência para aguentar o seu próprio peso. Foi o que aconteceu entre Espanha e França. E Portugal?
Parte II: O FILME DO APAGÃO
Para avaliar o que se podia ter feito para evitar ou mitigar o apagão, é de lembrar como estava a composição da geração não só em Espanha, como em Portugal, dado que as duas redes estão atreladas. A figura anexa mostra-o (o diagrama português está ampliado, relativamente ao espanhol).
Antes de nascer o Sol, em Espanha havia quase ¼ de produção eólica, um pouco mais de hidroeléctrica, mas mais de 1/3 de produção termoeléctrica firme, nuclear e a gás. Porém, pelo seu lado, a rede portuguesa estava toda pendurada nessas termoeléctricas espanholas, já que por cá as produções eólica e hídrica ocupavam quase tudo, muito acima do necessário para o consumo nacional, com as nossas centrais a gás a gerarem nem 5% do total! Portugal estava a exportar fortemente para Espanha hidroelectricidade, não sei a que preço.
Depois de nascer o Sol e à medida que este subiu, a geração fotovoltaica agigantou-se até se tornar a maior parte em Espanha à hora da elevação máxima do Sol (60%), muito mais que em Portugal onde também aumentou mas só até cerca de ¼. Portugal tem menos energia solar que Espanha, em percentagem. Para encaixar essa produção fotovoltaica, tanto Portugal como Espanha reduziram a sua produção hídrica, chegando até zero em Espanha, que reduziu também a sua produção a gás para metade, menos de 5%. Em Portugal a produção a gás já era menos de 5% mesmo de noite, confiando inteiramente na produção espanhola a gás e nuclear para dar estabilidade à nossa rede.
Além da redução das produções hidroeléctricas e a gás, para dar consumo ao excesso de energia fotovoltaica espanhola, Portugal começou a deixá-la entrar e pô-la a carregar água nas nossas centrais de bombagem, como é evidente dos gráficos (a linha preta é a do consumo). À hora em que o Sol atingiu o máximo e com ela a produção fotovoltaica em ambos os países, quase 1/3 da energia entrada na nossa rede vinha de Espanha e servia para fazer bombagem por cá, pois o consumo não precisava dela. Foi então que ocorreram as perturbações que as poucas centrais a gás nas duas redes não conseguiram controlar e levaram ao apagão.
O apagão não foi instantâneo. Inicialmente, após o primeiro evento que deve ter sido o disparo de alguns parques fotovoltaicos no Sul de Espanha, segundo consta, e que é um tipo de incidente vulgar a que as redes sabem reagir, as centrais a gás tentaram manter o barco a flutuar, juntamente com as ligações a França, mas entraram em oscilação umas contra as outras durante 2 segundos, como há registos de frequência que o comprovam. Isto é instabilidade do sistema, que durou até as linhas de ligação a França dispararem em cascata, por sobrecarga ou devido a essas oscilações (ainda não sabemos), agravando as dificuldades das poucas centrais térmicas ligadas. Uma vez a ligação a França rompida, a frequência da rede ibérica, isolada da do Continente, caiu rapidamente, as parcas centrais controláveis a funcionarem não conseguiram responder, e todo o sistema colapsou. A rede portuguesa, é claro, portou-se como uma mera região da de Espanha, à qual, como vimos, confiara a garantia de estabilidade baseada nas termoeléctricas espanholas, e servindo-lhe de depósito do excesso de produção fotovoltaica durante o dia, para carregar água nas nossas albufeiras e devolver depois essa energia hídrica à noite.
Parte III: O QUE DEVIA TER ACONTECIDO em PORTUGAL
Tem-se assumido que o apagão era inevitável e falado na lentidão da reposição da rede, que começou com apenas duas centrais nossas capazes de arrancarem sozinhas (blackstart), a hidroeléctrica de Castelo de Bode e a a gás da Tapada do Outeiro, no norte. As outras centrais só conseguem arrancar se já houver tensão na rede, pois não têm “motor de arranque” próprio, e mesmo Castelo de Bode consta que teve de se lá ir com um gerador Diesel para lhe fazer o “motor de arranque”. Com essas centrais ligadas começam-se a ligar consumos próximos, mas tem de ser pouco a pouco, pois há picos de consumo quando se ligam as linhas de Distribuição que é preciso deixar esvair antes de passar aos seguintes (isto quando os cortes duram mais de 15 minutos), e é preciso verificar se os consumos não ultrapassam a capacidade das centrais já ligadas. Também se ligam outras centrais próximas, com a tensão fornecida pelas primeiras, e assim sucessivamente até religar tudo, pouco a pouco. Aproveito para dizer que o meu doutoramento nos anos 80 andou à volta da realização destas reposições de modo automático…
Porém, assumir que o apagão completo era inevitável é discutível, como notou e bem o Presidente da Ordem dos Engenheiros! Em teoria, deviam ter sobrevivido algumas ilhas eléctricas, cada uma com a sua central ou centrais e consumos prioritários ligados, o que faria com que a religação da restante rede tivesse sido depois muito mais rápida, além de nunca terem chegado a ser desligados consumos prioritários! Mas, para que isso fosse possível e bem-sucedido, eram precisas duas coisas:
1. Que houvesse na nossa rede em operação um número mínimo de centrais controláveis capazes de funcionarem em ilha, ajustando a sua produção ao consumo das ilhas e com inércia suficiente para suportarem o solavanco que é sempre a “ilôtage”. Não havia, pois só as centrais termoeléctricas têm inércia suficiente para isso – as hídricas de albufeira, havendo água como havia, podem ajustar a produção ao consumo e portanto funcionar em ilha, mas têm uma inércia insuficiente para aguentarem solavancos desta ordem de grandeza, sobretudo quando estão a produzir pouco.
2. Que existisse um sistema de protecção de rede (“wide area protection”) que cortasse a rede em ilhas pré-definidas, desde logo desligando-nos de Espanha e garantindo um equilíbrio aproximado entre produção e consumo nessas ilhas, equilíbrio afinado a seguir por deslastres automáticos, e com comandos às centrais sobreviventes para passarem imediatamente a modo de controlo de frequência e de tensão, ou seja, a deixarem de ir atrás de Espanha e passarem a “cruise control” – tudo automático, feito desejavelmente num segundo! Já há 21 anos, quando formava um grupo de alunos brilhantes numa empresa de estudos do grupo EDP, o LABELEC, identifiquei a falta de tal protecção de rede, e propus à REN, através do LABELEC, o estudo conjunto da sua realização. Note-se que tal sistema de protecção de rede não requer quase nenhuns investimentos em material, que já existe instalado! Só precisa é de ser devidamente parametrizado! A REN nunca respondeu, sequer…
Aliás, ainda antes, há 23 anos, elaborei sob contrato com a DGE um normativo de regras técnicas que as renováveis, então a começarem a ser instaladas em Portugal, deviam cumprir de modo a não causarem danos à rede eléctrica; tal normativo nunca foi publicado e nunca me explicaram porquê. A DGE, desprovida de capacidade técnica, confia inteiramente na EDP para lhe fazer as regras técnicas e, neste caso, a EDP terá vetado a existência daquela regulamentação…
Há, pois, um problema político por detrás de tudo isto: a REN não tinha qualquer preocupação em salvaguardar a rede portuguesa de um incidente como este, e, com isso, o país, e isso já é um problema antigo. E, no entanto, faz parte da sua missão, seja empresa pública ou privada, garantir a segurança do fornecimento de energia ao país! Face a isso, é patente que a entidade reguladora, a ERSE, anda a dormir.
JOSÉ PINTO de SÁ
Engenheiro IST
Professor