Tal como em 2000 não foi uma cegonha que causou o apagão de metade de Portugal, o recente apagão ibérico não resultou de nenhum “evento atmosférico raro”, pois as redes eléctricas lidam com eventos desses todos os dias e estão preparadas para lhes fazer face.
A causa do apagão foi estrutural: falta de inércia da rede ibérica devido a demasiada produção fotovoltaica. Analisando os factos, como um detective:
Eram 12h30 em Espanha, hora a que o Sol está no máximo, e a geração fotovoltaica atingiu 60% do total. A ela somava-se geração solar térmica e eólicas, também não controláveis mas com prioridade de acesso à rede, somando 78% do total, de modo que, para acomodar a fotovoltaica que aumentava à medida que o sol subia no céu, o gestor da rede foi tirando de serviço as centais controláveis e com inércia, a começar pelas hídricas, totalmente removidas à hora do incidente, e metade das a gás, reduzidas a menos de 5% do total. Era como se estivéssemos a guiar um camião TIR só com o dedo mindinho no volante…
Se não ocorresse nenhum incidente, o sistema aguentava-se, tal como se consegue guiar um TIR só com o dedo mindinho se a estrada for sempre a direito e sem obstáculos.
Ainda não é público que evento preciso perturbou a rede, mas sabe-se que houve um disparo de uns parques fotovoltaicos no Sul de Espanha (que é onde os há mais), a rede entrou em oscilação e acabou por cair – o dedo mindinho não conseguiu controlar o camião e este despistou-se! É de notar que a geração fotovoltaica é muito sensível à passagem de nuvens sobre os parques, que causam quedas abruptas de produção. Chama-se a isso intermitência. Em princípio uma nuvem em trânsito “ataca” só um parque de cada vez, mas, se houver várias nuvens numa região, toda a geração fotovoltaica dessa região pode entrar em tremulação, à medida que as sombras das nuvens cobrem uns quantos parques e depois outros. As únicas centrais que conseguem compensar estas oscilações de potência são as tradicionais mas, como vimos, as hídricas espanholas tinham sido desligadas, e as hídricas portuguesas estavam em bombagem, a consumir o excesso de electricidade fotovoltaica vinda de Espanha. Restavam as a gás, em Espanha, demasiado poucas para darem conta do recado.
O que podia ter evitado o acidente, tecnicamente?
A melhor solução, tecnicamente, é por enquanto ficção científica. Consistiria em ter dotado as centrais fotovoltaicas e também as eólicas de “inércia sintética”. Há regulamentação europeia sobre isso mas, nota hoje o Público e há-de aparecer numa reportagem na TV comigo, em Portugal tal legislação não é aplicada. Nem em Espanha. Nem é fácil, no caso da fotovoltaica. Na realidade há muito poucas instalações no mundo que já incorporem os dispositivos capazes disso, há pouca oferta comercial, e a chave são enormes baterias que têm de acompanhar os parques. E quem paga isso? Não está definido, portanto não há…
Uma variante desta solução é, em vez de baterias, as fontes intermitentes (fotovoltaicas e eólicas) só operarem a por exemplo 60% da sua capacidade. Em caso de necessidade, têm uma reserva de 40% a mais que fará as vezes da “inércia”. É o que se usa na Irlanda, por exemplo.
A segunda solução é a que é praticada nas nossas ilhas e na maior parte das do mundo: não se deixa a produção fotovoltaica, nem a eólica (nesta a solução da inércia sintética é menos onerosa), ultrapassar um certo limite a partir do qual a rede não seja controlável em caso de perturbação. E a geração intermitente assim desligada é substituída por centrais de potência firme, hídricas ou, sobretudo, térmicas, porque as hídricas também têm uma pequena inércia e são de reacção mais lenta que as térmicas. Esta solução de limitar a produção intermitente pode ser combinada com a anterior, de ter essas fontes a operarem abaixo do máximo.
Nas nossas ilhas, que estudei e conheço, há casos em que parte das eólicas é desligada para dar espaço a grupos Diesel que fornecem inércia e potência firme. Sobretudo à noite, quando há pouco consumo e muito vento. Há 9 anos estudei o que se conseguiria na hipótese de, numa dessas ilhas, as eólicas serem dotadas da tal capacidade de “inércia sintética”, e a conclusão é que se poderiam reduzir os Diesel ligados a entre 50 e 65% da potência actual, poupando o respectivo gasóleo e emissões. Mas, mesmo com a tal nova tecnologia de inércia sintética nas intermitentes, ainda são precisas centrais térmicas controláveis com inércia “pesada” e geração adaptável…!
Agora, sobre o problema político: os produtores renováveis intermitentes não estão dispostos a produzir menos que o máximo, nem a gastar dinheiro a dotarem-se de tecnologias de mitigação da sua intermitência, da tal “inércia sintética”. E como em Portugal e em Espanha têm os poderes no bolso, fazem o que querem e temos isto.
E noto o seguinte: o excesso de produção fotovoltaica aconteceu ao meio dia e meia de um dia ensolarado, mas em Abril! No Verão, quando o Sol brilhar mais, como será?
Quanto ao comportamento específico da rede portuguesa durante o apagão: Portugal entregou inteiramente a segurança da sua rede eléctrica a Espanha, reforçando o número de interligações entre as duas redes e julgando que com isso nunca mais acontecia nada nem tinha de se preocupar com nada. Devia preparar-se para voltar a ser autónomo? Isso é pano para outras mangas…
Prof. Engº. José Luis Pinto de Sá