Relembro que o meu interesse no assunto é antes de mais técnico, do género do dos investigadores do CSI – perceber o que se passou, e identificar causas e efeitos. Responsabilizações, vêm depois. Temos então:

– As duas carruagens do funicular estavam interligadas por um grosso cabo de aço, cada uma a fazer contrapeso à outra, numa encosta com 17% de inclinação. Cada uma tinha os seus motores eléctricos para puxar o cabo, mas o esforço não era grande, porque enquanto uma subia a outra descia, ajudando. O cabo em si corria no subsolo e ligava-se em cada carruagem a uma peça chamada trambolho.

– Se o cabo partisse, as carruagens deixavam de ter contrapeso e tendiam a deslizar encosta abaixo, descontroladamente. Por isso, a integridade do cabo era vital para a segurança do sistema e, por isso também, o cabo era visualmente inspeccionado regularmente. Até há umas décadas, tal inspecção era permanente, com dois técnicos. Depois passou a ser feita uma vez por dia.

– As regras da arte mandam que a inspecção do cabo obedeça a dois requisitos: 1) ser feita por alguém experiente e sempre o mesmo, para poder comparar o estado do cabo ao longo do tempo; 2) que observe com especial atenção os pontos mais vulneráveis, nomeadamente os extremos do cabo e suas ligações às carruagens. É claro que mesmo que a referida inspecção fosse feita por “gente da casa” da Carris, isso não impedia que tal gente se reformasse e a sua experiência se perdesse. Mas é o segundo requisito que é aqui mais importante.

– O cabo não “partiu”. Foi a ligação do cabo ao trambolho de uma das carruagens que se deslaçou e soltou-se. Esse deslaçamento não sucedeu de repente, e põe-se a questão de como é que a inspecção visual diária não deu por ele. A resposta é simples: a tal ligação é feita dentro de um dispositivo fechado cujo interior não se vê, a não ser desmontando-o. O relatório do GIAFF mostra-o, e eu reproduzo a sua imagem na Fig. 1.

Na mesma figura mostro a solução dos funiculares de San Francisco que, tais como este, são do sec. XIX e têm hoje em dia uma função primordialmente turística. As “garras” de fixação do cabo à carruagem são visíveis a olho nu, assim como o cabo, ao contrário do trambolho português, e na realidade largam e agarram o cabo várias vezes ao dia. É uma solução inventada por um engenheiro alemão ainda no sec. XIX mas que não foi adoptada em Portugal, onde o projecto foi português com inspiração europeia.

Comparação entre trambolhos fechados e sistema de garras visível

Figura 1. Os trambolhos fechados e de visualização inacessível à manutenção, como os usados no elevador da Glória e mostrados nas duas fotos acima, não têm de ser assim. Nas duas fotos em baixo mostro o sistema de “garras” usado pelos funiculares de San Francisco – à esquerda, agarrando o cabo, à direita sem o cabo. Como é patente, mantém-se a visibilidade do cabo para efeitos de inspecção do mesmo, nesta solução. O aperto é feito na própria carruagem com um torniquete accionado pelo condutor e não visível na foto.

Uma vez o cabo solto, as carruagens da Glória tinham dois travões.

– O primeiro, clássico e semelhante aos dos automóveis, é umas maxilas que imobilizam as rodas de ferro (vd. imagem superior direita da figura 3). É comum ao sistema português e ao de San Francisco e aos demais. Porém, em descidas inclinadas e dado que as rodas de ferro rolam sobre carris também de ferro, o atrito entre eles é demasiado baixo e não consegue parar a carruagem, se esta já for lançada. As rodas escorregam sobre os carris.

– O segundo travão é, no caso português, constituído por umas peças metálicas presas à carruagem e que se deslocam com ela mas por baixo da calha do cabo entre carris e que, caso falhe o cabo, são automaticamente puxadas para cima contra a parte inferior da calha. Mas, como também são de metal, têm o mesmo problema do outro travão: o atrito entre essas peças e a calha metálica é demasiado pouco para conseguir parar a carruagem, que continua a deslizar e cada vez mais depressa, como ocorreu em Lisboa.

Segundo sistema de travagem dos elevadores da Glória

Figura 2: Segundo sistema de travagem dos elevadores da Glória. Accionado automaticamente em caso de falha de tracção, uma peça (sapata?) metálica é comprimida contra um perfil metálico “em Z”. Mostrou-se inútil.

– Os americanos estudaram o assunto e, para o segundo travão, adoptaram uma solução que oferece muito mais atrito e com isso capacidade de travagem: umas enormes sapatas de madeira macia, que são pressionadas contra o solo. Na segunda figura mostro-as. Claro que a madeira consegue um atrito muito maior, embora travagens destas costumem deixar a madeira a cheirar a queimado e a necessitar de substituição.

Sistemas de travagem comparados

Figura 3. Acima à esquerda, travões de maxilas sobre as rodas, semelhantes no elevador da Glória e nos de San Francisco. Porém, na cidade californiana o segundo sistema de travões usa calços de madeira macia premidos contra o solo, para maior fricção, como se mostra na figura inferior da esquerda. À direita foto de um stock de calços de madeira desses travões. Obviamente, os americanos verificaram que o metal contra metal oferece pouco atrito e não consegue travar bem, e daí a solução da madeira. Os funiculares de San Francisco têm ainda um terceiro sistema de travagem, de último recurso, que nunca falha mas causa uma paragem brutal. No elevador da Glória não existia o terceiro travão.

– Finalmente o terceiro travão, de emergência, que nas concepções iniciais portuguesas não existe. Mas, nos funiculares de San Francisco, sim. Nesses, é uma lâmina de aço que é baixada entre os carris, sobre a calha por baixo da qual está o cabo. A calha tem uma abertura ao longo do seu percurso, mas essa abertura tem uma largura variável. Alarga-se, e depois estreita-se, e assim sucessivamente. Quando a lâmina de aço é descida, acaba por entrar na calha quando a abertura desta se alarga, mas depois quando chega à parte mais estreita fica encravada, estacando a carruagem. A paragem é brutal e pode provocar ferimentos em alguns passageiros, mas ninguém morre. Para depois retirar o espigão é preciso um maçarico…

Sistema completo de travões dos funiculares de San Francisco

Figura 4: As carruagens dos funiculares de San Francisco com os 3 travões destacados. Note-se os calços de madeira (4 por carruagem) assinalados a laranja, providenciando atrito suficiente para a travagem, na maioria dos casos. Note-se ainda a existência do 3º travão, de emergência (figura superior), constituído por uma lâmina de aço que desce e se prende num rasgo existente na calha entre carris, provocando a paragem brusca e imediata, caso os outros travões falhem. Que esses outros travões podem falhar demonstrou-se quando o piso está molhado pela chuva e particularmente escorregadio. Nos elevadores de Lisboa não existia este terceiro travão, nem calços de madeira.

Mas a existência de um terceiro travão “radical”, que não se baseia em atrito mas em prender o elevador ao solo através de um sistema de engate, como o dos funiculares de San Francisco e mostrado na figura 4 acima, não existe só nessa cidade, mas também em Wellington, na Nova Zelândia (ilustrado na figura 5). Desde há muito que o sistema neozelandês tem um terceiro travão mas, num acidente ocorrido em 1942 e que causou uma morte, em que o cabo se desengatou das carruagens, esse triplo sistema de travagem também não conseguiu impedir a descida das mesmas, alegadamente por que quando actuaram as carruagens já levavam uma velocidade excessiva. Posteriormente, em 1975, e após uma revisão geral da segurança do sistema que reconstruiu as carruagens (por empresas suíças), foi instalado o sistema actual e ilustrado na figura, que, tal como o de San Francisco, não depende de atrito para a travagem.

https://paperspast.natlib.govt.nz/newspapers/ODT19420630.2.86

Esquema do funicular de Wellington com terceiro travão

Figura 5: esquema das carruagens de um funicular neozelandês em Wellington, ilustrando a presença de um terceiro travão de emergência (“fell brake”) que prende a carruagem a um carril apropriado, existente desde 1975.

Os funiculares neozelandeses gozaram de nova modernização, particularmente na electrónica, nos anos 80, tendo, por razões de fiabilidade, passado então a internalizar a manutenção, antes disso subcontratada externamente, mantendo-se actualmente lucrativos, apesar de em concorrência com os autocarros.

Como é claro, o elevador da Glória tem uma concepção obsoleta e aparentemente nunca ninguém a questionou. Em 1915 foi electrificado mas sofreu um acidente que o parou até 1923! Essa remodelação não mexeu nos princípios de projecto. Para comparação, os funiculares de San Francisco foram completamente modernizados entre 1982 e 1984, há 40 anos, enquanto os de Wellington o foram entre 1973 e 1979.

Vale a pena recordar que a concepção do elevador da Glória tem 140 anos e foi obra do eng.º Mesnier de Ponsard, nascido no Porto de pais franceses, onde fez o liceu, tendo-se depois formado simultaneamente em Filosofia e Matemática na Universidade de Coimbra e estudado engenharia mecânica em França, percorrendo depois escolas-oficinas da Alemanha, França e Suíça. De regresso a Portugal constituiu uma empresa que projectou e explorou numerosos elevadores, ainda no século XIX, nomeadamente todos os de Lisboa (incluindo o da Glória), o da Nazaré, o de Braga, e outros. Em 1926 a sua empresa cedeu a exploração desses elevadores a diversas empresas públicas entretanto constituídas.

Como sucedeu com os automóveis, a tecnologia de elevadores privilegiava, no início, a novidade da capacidade motriz, subalternizando a segurança. Em 1963 um cabo rompido causou um acidente no elevador da Nazaré, provocando dois mortos e numerosos feridos, o que levou à sua indisponibilidade por cinco anos e, em 2002, à completa revisão da respectiva tecnologia, tendo a versão actualmente em serviço passado então a ter três sistemas de travagem independentes, de que no entanto não consegui saber pormenores.

Segundo os termos do contrato de manutenção da Carris com a MNTC, competiria a esta a manutenção do elevador da Glória (e dos restantes de Lisboa), em todos os seus aspectos incluindo a previsão de falhas, mas independentemente de ter ou não cumprido as especificações técnicas do contrato, ao custo de um milhão de euros anuais, constata-se que a empresa é na verdade unipessoal e que tem dado como local da sede um endereço errado, ou seja, é uma empresa de “vão de escada”. Quando concorreu ao primeiro contrato, firmado já com o actual administrador da Carris, a empresa não tinha qualquer experiência de manutenção de elevadores nem sequer alvará, mas, quando do acidente, o contrato já vigorava há três anos. Nos termos desse contrato “Não havia qualquer obrigatoriedade de ensaios mecânicos ou testes não destrutivos aos cabos de tracção, limitando-se o contrato a prever que as empresas entregassem relatórios de verificações diárias, semanais, mensais e semestrais”.

Da pesquisa que fiz sobressai o nome, como especialista português, do Eng.º António Vasconcelos, actualmente aposentado mas responsável durante décadas, no sec. XX, pela Divisão de elevadores da EFACEC, com livros e artigos publicados, e associado à empresa LIFTECH, a única concorrente em 2022 ao concurso da Carris para a manutenção dos elevadores com qualificação técnica e alvará apropriado, mas excluída pelo preço.

https://liftech.pt/liftech-patrocina-o-lancamento-do-livro-ha-engenharia-nos-elevadores/