Economistas e líderes empresariais defendem aposta na indústria, mas deixam alertas
Quando tomou posse para o segundo mandato como presidente da APICCAPS, a associação que representa a fileira do calçado, em julho, Luís Onofre fez questão de escolher como palco a Escola Secundária de Felgueiras, num dos polos industriais do sector. Esta foi uma forma de marcar a aproximação às novas gerações e dar mais um passo no desígnio de atrair vocações.
Onofre acredita que a indústria tem futuro, o que obriga a pensar para lá do curto prazo. Para este sector, o tema da industrialização não é de agora. Mas a verdade é que voltou ao centro da agenda política europeia e mundial. Portugal não é exceção. Contudo, os economistas alertam para que terá de ser uma nova indústria, assente na economia do conhecimento. Precisamente o caminho que tornou o calçado luso numa referência internacional. E do lado dos dirigentes empresariais há ceticismo quando ouvem os políticos falar de reindustrialização.
A indústria transformadora perdeu muito peso na economia nacional nas últimas décadas. Em 1965, a sua fatia no valor acrescentado bruto (VAB) atingia 26,3% — um máximo histórico —, ficando nos 22,7% em 1986, ano da entrada na então Comunidade Económica Europeia. Longe dos 30,7% da então Alemanha Ocidental, mas acima de Espanha (22%) ou França (19%). Só que essa perda de peso acentuou-se com o euro, e em 2019 estava nos 13,5%, apenas à frente de nove países da UE (ver gráficos), representando 17% do emprego.
“O novo contexto europeu é favorável à reindustrialização”, frisa Luís Mira Amaral, antigo ministro da Indústria e Energia. “A pandemia mostrou a excessiva dependência do mercado chinês”, colocando a tónica na “europeização das cadeias de valor globais”, um movimento de que Portugal “pode beneficiar”. José Maria Brandão de Brito, diretor do Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento, aponta no mesmo sentido: “A Europa percebeu que estava a ficar muito vulnerável com a deslocação do centro económico mundial para o Pacífico” e “criou mecanismos de financiamento para estimular a industrialização muito rapidamente”. O risco é que “os principais blocos estão a fechar-se, adotando políticas protecionistas, e a querer reindustrializar ao mesmo tempo, o que pode levar a uma regressão da economia mundial”, alerta Jorge Marrão, presidente da Missão Crescimento.
No entanto, a reindustrialização “tem de ser feita no ambiente da economia do conhecimento, assente em inovação, com gente qualificada, salários decentes e forte ligação às universidades e centros de investigação”, frisa Mira Amaral. E “tem de estar alinhada com a estratégia europeia de transição digital e ecológica, que passa pelo Green Deal”. Uma aposta que já se vê em Portugal, considera, com clusters na biotecnologia, saúde e ciências da vida, materiais, espaço e defesa, e mobilidade.
O alerta é partilhado por Augusto Mateus, consultor e antigo ministro da Economia. “A reindustrialização tem a ideia perigosa de que é possível voltar atrás, à mera transformação de bens tangíveis, com preços baixos. Aí as margens são escassas, os salários baixos.” É preciso “uma nova industrialização, centrada na economia do conhecimento e em soluções sustentáveis e eficientes para empresas e famílias, densificando a integração de serviços. São os bens intangíveis que estão no coração do valor”, defende.
Puxar pela marca Portugal
O processo de reindustrialização é demorado, avisa Pedro Braz Teixeira, diretor do gabinete de estudos do Fórum para a Competitividade. “É preciso tornar Portugal mais atraente para o investimento direto estrangeiro, baixando a taxa de IRC e combatendo a instabilidade fiscal e legislativa, bem como a morosidade de procedimentos e a burocracia”, diz.
Apesar de todas as dúvidas sobre os efeitos práticos do “velho discurso politicamente correto sobre a reindustrialização”, a AEP — Associação Empresarial de Portugal concorda que este pode ser um momento único para avançar e até já tem o programa Pedip 5.0 — O Desígnio da Indústria. A receita para colocar Portugal na rota do investimento no sector é conhecida e um dos problemas está na frente fiscal. “É urgente dar garantias de estabilidade, sem esquecer as tributações autónomas, que tornam tudo imprevisível”, diz Rafael Campos Pereira, vice-presidente da AIMMAP, a associação que representa a fileira metalúrgica.
“Também é preciso que o país esteja pronto a colocar os produtos rapidamente no centro da Europa, sem atrasos nem custos adicionais para os clientes, o que exige plataformas logísticas, ferrovia, ligações portuárias”, defende José Couto, presidente da AFIA — Associação de Fabricantes para a Indústria Automóvel.
Formar e valorizar os recursos humanos, designadamente para a economia digital, é outra pilar. Luís Miguel Ribeiro, presidente da AEP, diz que na população ativa com o ensino secundário a média lusa para o segmento entre os 25 e os 64 anos é de 52,2%, contra os 78,6% da OCDE.
Mário Jorge Machado, presidente da ATP — Associação Têxtil e Vestuário de Portugal, acredita que a dimensão das empresas é uma batalha essencial, porque “o tamanho neste caso importa. O VAB por trabalhador cresce quando as empresas crescem, e isso é fundamental para a produtividade e subida dos salários”.
Se o calçado avançou com o Shoes from Portugal, agora Portuguese Shoes, para afirmar a capacidade única de o país fazer bem sapatos, a metalurgia investiu no Metal Portugal, um dos pilares do salto de 42% nas suas exportações, e a AEP ergue a bandeira do Portugal Sou Eu — Compro o que É Nosso, juntando 3400 empresas no esforço de promover a produção nacional, e todos acreditam que o futuro continua a passar por aqui. O que é consensual é que será premente investir em sectores como o automóvel, para continuar na corrida de fornecer o carro do futuro, e garantir condições de financiamento ao investimento empresarial. Quanto ao resto, se a Europa quer ser mais industrial, as multinacionais europeias têm de alinhar e Portugal está bem posicionado para se tornar relevante dos têxteis ao calçado, à metalurgia, ao automóvel, considerando a capacidade de resposta a produções de nicho até ao limite da personalização e o prestígio do made in Portugal.
CE destaca papel da indústria
Transição digital e transição verde. É este o duplo pilar em que assenta a estratégia europeia para a indústria. No recente discurso sobre o estado da União, a presidente da Comissão Europeia (CE), Ursula von der Leyen, destacou que o sector “impulsiona desde há muito a nossa economia e fornece uma vida estável a milhões de pessoas”. Apontando que os últimos seis meses aceleraram a transformação digital e verde, “numa altura em que a paisagem competitiva global está a mudar de forma fundamental”, a presidente da CE anunciou que 37% dos €750 mil milhões do plano de recuperação Next Generation EU serão diretamente gastos nos objetivos do Green Deal europeu. Ao mesmo tempo, defendeu que a Europa tem de assumir a liderança no digital.
Margarida Cardoso e Sónia M. Lourenço de 26 de setembro de 2020
Leia ‘Reindustrializar sim, mas…‘ no Semanário do Expresso.