Ironiza sobre os fundos europeus para os próximos anos
Muitos estiveram atentos à apresentação do plano final de António Costa Silva. Mais uma vez, fiquei admirado com o tempo que tanta gente inteligente, e digo-o sem ironia, perde com o que não tem qualquer importância. Haverá mesmo quem, no seu perfeito juízo, considere ser possível uma cabeça traçar um plano económico para um país para os próximos anos? Se já seria absurdo se feito por uma enorme equipa multidisciplinar, o que dizer quando sai de uma só cabeça? Ainda por cima, a cabeça de alguém que aceita fazer um plano destes.
Houve quem lesse o documento. 1500 sugestões de melhoria. Até vi quem se chateasse por não ter as suas sugestões acolhidas no documento final. Como respeito muitas destas pessoas, quero deixar uma palavra de consolo: não faz mal; esteja lá o que estiver escrito nesse documento que vocês leram, a estratégia de Portugal nos próximos anos será uma: aproveitar os dinheiros que vêm da Europa.
As linhas estratégicas serão as que cabem nos buracos das agulhas europeias, com que se coserá a distribuição de fundos. Estamos, neste momento, parados, fazendo um compasso de espera, à espera que os fundos europeus sejam libertados. Depois, nos próximos anos, responderemos aos desígnios societais emanados da Europa: desde a igualdade de género à digitalização. E tudo será sustentável e verde.
(Já agora, enquanto Portugal andou a estoirar dinheiro investindo nas renováveis — chegámos até a ser notícia internacional em 2016 por termos produzido eletricidade apenas a partir de energias renováveis durante quatro dias —, sabem qual é o principal produtor e consumidor de carvão na Europa e um dos maiores do mundo, quer em termos totais quer per capita? A Alemanha. Por algum motivo não são eles que estão na cauda da Europa. Eles fazem análise económica dos investimentos, nós tentamos salvar o mundo.)
Sair do trimestre mais desafiante da nossa história económica democrática com 5,8% merece ser assinalado
Mas percebo o drama. É a nossa última oportunidade. Estejam descansados, porém. Só quem não percebe o funcionamento da burocracia pode pensar isso. Quantas vezes já vos disseram que era a última oportunidade? A primeira última oportunidade foi no último governo de Cavaco. A segunda última oportunidade foi com Guterres. Ainda tivemos uma última oportunidade com Sócrates e, já com Pedro Passos Coelho, lançou-se o Portugal vinte-vinte, que é a última oportunidade que está agora a acabar. Com o Portugal vinte-vinte e 25 mil milhões da União Europeia, recuperaríamos a trajetória de crescimento (verde), de criação de emprego qualificado e outras coisas muito boas.
Mas esta é que vai ser a última. Os países ricos não estão dispostos a continuar a pagar aos países do Sul, que nunca mais aprendem? Esqueçam. As burocracias alimentam-se a si mesmas. Por toda a Europa, criaram-se estruturas burocráticas para gerir os fundos. Desde a organização de candidaturas, à sua avaliação e, depois, à sua distribuição. Há ainda as que se dedicam a garantir a boa aplicação dos fundos. Todos estes euroburocratas são bem pagos e têm grande capacidade de pressão. Portanto, sempre que um quadro comunitário está a acabar, logo desenham outro ainda mais ambicioso para enfrentar desafios ainda mais desafiantes. Antes era o aquecimento global, agora é a covid — já devem ter em preparação um organismo europeu para gerir de forma centralizada o combate à próxima epidemia, afinal, não queremos ser apanhados de calças na mão novamente — e depois será algo ainda mais premente.
Pouca parra e muita uva
O défice orçamental no primeiro semestre de 2020 terá ficado pelos 5,8% do PIB. Este semestre inclui os três meses mais duros da pandemia, quer do ponto de vista da saúde pública, quer do económico, quer orçamental. Abril, maio e junho. Nestes meses, aguentámos um confinamento bastante generalizado e o Governo teve o desafio de manter milhares de empresas à tona de água para não se destruírem centenas de milhares de empregos. O principal programa do Governo, o lay-off simplificado, cumpriu os seus objetivos. Muitas empresas puderam comprar tempo. Naturalmente, a sua sobrevivência dependerá das condições que o mercado lhes oferecer nos próximos tempos e da sua capacidade de adaptação. Mas isso já não é responsabilidade do Governo.
Nestas condições, considero os 5,8% de défice um feito. Não tendo nós alguma vez enfrentado uma crise como esta, o nosso défice médio no século XXI é de 5%. Sair do trimestre mais desafiante da nossa história económica democrática com 5,8% merece ser assinalado. É possível que cheguemos ao fim do ano bem dentro das previsões do orçamento suplementar (6,3%). Parabéns às equipas da economia e das finanças que desenharam este plano de resistência económica. Com pouca parra, fez-se muita uva.
Professor de Economia da Univ. do Minho
Leia no expresso o artigo de Luís Aguiar-Conraria de 19 de setembro de 2020.