Não há elemento mais abundante no universo, nem mais leve. Mas, porque não se “agarra”, é preciso produzi-lo. É até simples fazê-lo, a eletrólise aprende-se no liceu. Sim ou não ao projeto do hidrogénio? Desta vez, essa simplificação de ambicionada veemência não basta. Leia, pois, quem pensa “sim, mas” e “não, se”: sim ao hidrogénio, mas sem embarcar nesta monumentalidade triunfal do Governo, não se for uma aposta chegada pela força dos lóbis e cegada pela urgência desesperada de espatifar o dinheiro dos outros.
Não temos sectores com lóbis tão poderosos como o da energia. Em cada escolha tecnológica e em cada subsidiação há um negócio com vencedores e perdedores. Estamos sempre a falar de negócios.
O hidrogénio é futuro, e sem ele o mundo continuará movido a três quartos pelo petróleo. Não há grandes dúvidas científicas sobre isso. Na produção de energia, nos navios, nos comboios não eletrificados, talvez nos camiões de longo curso, dificilmente nos automóveis. Mas mesmo tendo boas condições naturais (como Chipre ou Creta), não somos uns iluminados que descobriram o que o resto do mundo desconhece. Há riscos: tecnológicos, de mercado e de cedência a lóbis. E, portanto, de precipitação e megalomania, dar passos maiores que a perna e sem saber que sentido terá a perna por enquanto para trás.
A questão tecnológica significa investir cedo de mais, antes do custo tecnológico descer, como é provável. O Governo desatrelou a carroça para pôr os bois a andar mais depressa e lançou um megaprojeto nacional. Se, no futuro, a evolução dos eletrolisadores ou a produção em escala baixar os preços, investimos caro e ficamos a ver navios para a concorrência mais tardia. E não venham com a conversa do “que se lixe, o dinheiro não é nosso”, porque não só isso é um desrespeito pelos contribuintes (mesmo que sejam outros contribuintes) como desvia financiamento de outros projetos potenciais, desperdiça a chance e pode acabar mal. Há não muitos anos, foi um ver-se-te-avias a subsidiar com “dinheiro dos outros” fábricas de painéis fotovoltaicos; acabou quase tudo falido.
A questão de mercado é mais complexa. É que ainda não há mercado. Ainda não há compradores. Ainda não há regulamentação. Nem fábricas, nem tubos, nem ligações. Ainda não há políticas tarifárias para o “hidrogénio sujo”, que é mais barato em quase um terço que o verde, pelo que terá de ser encarecido por decisões europeias, como no CO2. A competitividade do hidrogénio depende do custo futuro da energia, é preciso que o gás natural seja caro, que o hidrogénio sujo seja encarecido, ainda não temos sequer os projetos do solar em operação e já estamos a meter hidrogénio em cima de nada. É a diferença entre investir e apostar. Apostar é esperar ganhar assumindo o risco de perder.
Terceiro, os lóbis. Enquanto a eletricidade é energia “de cabos”, o hidrogénio é “de tubos”. É, pois, um negócio que atrai não apenas elétricas mas sobretudo petrolíferas, que comem governos ao pequeno-almoço. Não há preconceito, há experiência e ceticismo. Duvido muito da capacidade de João Galamba e das suas equipas para resistirem à persuasão das empresas, não duvido da capacidade destas em garantir lucros e rendas, se possível excessivas. Estamos fartinhos de ver governantes engolidos na treta do progresso imparável, que acaba em custos imparáveis e talvez um emprego para eles. E estamos mesmo a ver consórcios liderados por estrangeiros, com intermediários portugueses, a receber três quartos do investimento para importar quase tudo a alemães e a deixar para o Estado a derrama, nem sequer criando os empregos hoje propalados: muitos são só para a fase de construção das fábricas, não permanecerão na sua operação.
O que faz sentido então? Sines, onde já há infraestrutura, tubos, pontos de ligação, custos de rede, mas não espalhar centrais pelo país como eucaliptos na floresta. Não concordo com a posição retrógrada, mesmo que fundamentada, de um documento assinado por 40 contra o hidrogénio verde. Nem concordo com a insolação delirante do Governo, que tanto pode fazer de nós os pioneiros como os tolos da sala europeia, que, nimbados pelo brilho dos fundos de Bruxelas e aflitos com um país sem investimento, anunciam novas Autoeuropas e podem deixar-nos lindos sarcófagos.
Leia aqui o artigo de Pedro Santos Guerreiro de 22 de agosto de 2020 no Semanário do Expresso.