Houve vários negócios ruinosos feitos por entidades ditas privadas, mas com o apoio entusiástico do Estado, que acabaram no colo dos bancos e que os portugueses estão agora a pagar
“O moço do cego levou-o à beira do abismo e disse, é só mais um degrau”
Joaquim Namorado
Éfácil estar de acordo com muitas das premissas do texto “A proposta de hidrogénio verde é a aposta certa para o sector da energia em Portugal”, publicado no último número deste jornal, mas não concordo com a conclusão expressa no título, que agradará certamente ao secretário de Estado João Galamba, mas não constitui uma boa recomendação.
Mas vamos ao que interessa. Tal como os subscritores do texto, também acredito no paradigma económico assente na economia verde, com a diferença que o faço há muito mais tempo, porque, como dizem, sou de outra geração. Mas vejam só, escrevi contra a política do betão de Cavaco Silva, contra os excessos de autoestradas de José Sócrates e continuo a bater-me há muitos anos a favor dos transportes coletivos e contra o uso e abuso das energias fósseis. Por isso, há muitos anos que defendo um sistema ferroviário moderno, nomeadamente que permita a nossa ligação com a Europa no transporte de mercadorias, a fim de retirar milhares de camiões diários das estradas, camiões movidos a diesel espanhol. Como defendo uma linha férrea moderna de passageiros de Lisboa ao Porto e de Lisboa a Madrid, vias que acabariam com o avião entre Lisboa, Porto, Madrid e Barcelona. Também, com outros cidadãos, há 20 anos, apresentámos ao governo de então um projeto para transportar camiões em plataformas ferroviárias, que não foi aprovado, era moderno demais. A propósito, também tenho um carro elétrico! Chega de políticas verdes?
Vejam que ainda há fome em Portugal, a habitação é má, a ignorância é muita e o desemprego vai crescer, e não vai ser o hidrogénio que os vai salvar
Também não tenho nada contra o vosso “entusiasmo relativamente à proposta de hidrogénio verde para Portugal”. Acontece é que tenho boa memória e recordo os vários negócios ruinosos feitos por entidades ditas privadas, mas com o apoio entusiástico do Estado, que acabaram no colo dos bancos e que os portugueses estão agora a pagar. Espero que conheçam a história, mas recordo: Qimonda, Ongoing, La Seda, Vale do Lobo, Oi, BES, Novo Banco, etc. etc. Felizmente que o porto do Barreiro borregou e espero o mesmo do aeroporto do Montijo. E não me digam que o tempo é outro, porque os homens são os mesmos.
Por outro lado, pergunto-me a razão do vosso entusiasmo com o hidrogénio e a vossa coexistência pacífica com uma rede ferroviária do século XIX. Mistérios.
Já sei! O hidrogénio coloca-nos na linha da frente da modernidade tecnológica internacional, mas aí recordo-vos que o argumento já foi usado para a produção eólica, com o resultado das empresas e das famílias portuguesas estarem a pagar a energia mais cara da União Europeia em unidades de poder de compra. Acham os senhores que estes portugueses são os mais indicados para continuarem a sofrer os custos da vossa modernidade? Vejam que ainda há fome em Portugal, a habitação é má, a ignorância é muita e o desemprego vai crescer, e não vai ser o hidrogénio que os vai salvar.
Por outro lado, os senhores são ilustres universitários e devem conhecer a curva da rentabilidade tecnológica, não sei se o nome é este, mas sei que enquanto empresário não comprava um equipamento quando a tecnologia surgia nos jornais, para o fazer apenas quando o preço correspondia ao rendimento que poderia esperar. Por outro lado, acham mesmo que quando vivemos uma crise histórica, devemos investir em projetos de capital intensivo e fracos criadores de emprego?
Finalmente, não é sério escrever: “Na verdade, a decisão para Portugal é simples: ‘fazer nada’ ou ‘andar para a frente’. É assim que tratam as questões na vossa universidade? Andam para a frente, sem medirem para onde vão?
Henrique Neto, Ex-deputado do PS
Este artigo foi retirado do Semanário do Expresso de 15 de agosto de 2020